O país da censura judicial
Boa parte das pressões contra a imprensa brasileira vem do Judiciário – e o STF finge não saber disso. Novo caso acaba de acontecer no Paraná
Depois de uma saraivada de críticas à decisão de responsabilizar veículos de imprensa pelas declarações “irresponsáveis” de entrevistados, ministros do STF, como o presidente da corte Luís Roberto Barroso e o decano Gilmar Mendes, disseram que a intenção jamais foi intimidar o jornalismo ou induzi-lo à autocensura.
Eles sugeriram que o acórdão do processo, ainda a
ser divulgado, poderá esclarecer o sentido da decisão, para evitar que as
instâncias inferiores do judiciário sejam mais rigorosas do que o pretendido.
São tentativas de dourar a pílula. Ainda que se
suavize ao máximo a linguagem do acórdão, permanece o fato de que há um novo
incentivo na praça para processar a imprensa. E os ministros sabem muito bem
que as inclinações de uma parte considerável da magistratura brasileira vão no
sentido da censura. Quer um exemplo?
No último sábado, a juíza Giani Maria Moreschi do
Paraná proibiu a publicação de reportagens sobre as negociações entre o
presidente da Assembléia Estadual Ademar Traiano e o Ministério Público
Federal, tendo em vista uma delação premiada. Menções anteriores ao assunto
tiveram de ser retiradas do ar e futuras matérias serão punidas com multa
diária de R$ 50 mil.
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Trata-se de um caso em que o Judiciário submeteu a
imprensa, de forma gritante, a um mecanismo de censura prévia. A censura prévia
é proibida pela Constituição. Além disso, a tese utilizada na sentença – a de
que informações em segredo de justiça não podem sair nos jornais – foi refutada
mais de uma vez pelo STF (num tempo em que a corte era amiga da liberdade de
imprensa), pois o dever de guardar o sigilo se aplica aos funcionários
públicos, mas não a repórteres. Mesmo assim, a juíza amordaçou o jornalismo.
Não é preciso voltar muito no tempo para encontrar
outro caso inaceitável em um país que se diz democrático. Em meados de
novembro, a justiça de Santa Catarina condenou a jornalista Schirlei Alves a
seis meses de prisão em regime aberto e ao pagamento de multas que totalizam R$
400 mil reais, pela alegada difamação de um juiz e de um promotor.
Shirlei revelou os constrangimentos a que foi submetida
a influenciadora Mariana Ferrer durante uma audiência. Sem sofrer maiores
reprimendas, o advogado de defesa humilhou a jovem que dizia ter sido estuprada
por seu cliente. O promotor, por sua vez, ponderou que o acusado não tinha como
saber que Mariana não estava em condições de consentir na relação sexual. A
jornalista usou a expressão “estupro culposo”, entre aspas, para descrever essa
tese, com óbvia intenção irônica.
Como sempre acontece nesses casos, a juíza prestou
homenagem à liberdade de imprensa, para em seguida puni-la. O fato de haver
jurisprudência no STF sobre o uso do “princípio da modicidade” na aplicação de
multas, sobretudo quando os alvos da crítica são agentes públicos, não impediu
que a indenização devida fosse fixada em exorbitantes R$ 400 mil reais.
Deve ser porque essa jurisprudência vem do tempo em
que o STF era amigo da liberdade de imprensa. No ano passado, a própria corte
mudou de ideia, submetendo o jornalista Rubem Valente, veterano de reportagens
investigativas, a pagar uma indenização de R$ 310 mil por danos morais. O
beneficiário? O ministro Gilmar Mendes, que se sentiu ofendido pelo trecho de
um livro do repórter.
Em 2009, quando derrubou a Lei de Imprensa herdada
do regime militar, o STF demonstrou ter pleno conhecimento das consequências
desse tipo de indenização aplicada a veículos e jornalistas. O ministro Ayres
Britto, relator do processo, registrou que multas pesadas são “um poderoso
fator de inibição da liberdade de imprensa”. Continuam sendo. O que mudou foi o
STF.
Em 2022, entrevistei para a Crusoé o jornalista
Emmanuel Colombié, que era então diretor da organização Repórteres sem
Fronteiras na América Latina. O tema era a má posição do Brasil nos rankings de
liberdade de imprensa e o papel do Judiciário, STF já incluso, nessa
classificação.
Disse Colombié: “A judicialização da censura é,
sim, um problema brasileiro. Na atualidade, observamos que parte das limitações
ao exercício da atividade jornalística no Brasil decorre de decisões judiciais
equivocadas e, algumas vezes, censórias.”
Mesmo na época em que o STF era amigo da liberdade
de imprensa, eram comuns as sentenças de primeira e segunda instâncias que
pretendiam castigá-la. Agora que a corte tem dúvidas sobre a importância desse
valor democrático, a censura judicial tem ainda mais licença para prosperar no
Brasil.
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