Por saúde, STF mandou políticos para casa, não réu doente preso político do 8/1
Solicitação feita pelo advogado de Cleriston Pereira da Cunha ficou engavetada por quase nove meses, até sua morte na Papuda
Por alegados motivos de saúde, políticos condenados
por crimes de colarinho branco, como Paulo Maluf e Jorge Picciani, e assessor
denunciado, como Fabrício Queiroz, tiveram pedidos de prisão domiciliar aceitos
por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), enquanto um pedido feito em 27
de fevereiro em favor de Cleriston Pereira da Cunha não chegou a ser analisado
por Alexandre de Moraes (foto) antes da morte do réu do 8/1 no Complexo
Penitenciário da Papuda, em Brasília, na segunda-feira, 20 de novembro.
A solicitação feita pelo advogado Bruno Azevedo de
Sousa – ainda reforçada em maio com alerta sobre “sentença de morte” – ficou
engavetada por quase nove meses, período muito superior ao tempo transcorrido
desde as solicitações…
– de Antônio Carlos de Almeida, o Kakay, e Ricardo
Tosto, advogados de Maluf;
– de Nélio Machado, advogado de Picciani;
– e de Paulo Emílio Catta Preta, advogado de
Queiroz…
…até as decisões de Dias Toffoli nos dois primeiros
casos e de Gilmar Mendes, no terceiro: em todos os três, diga-se, apesar da
posição contrária de outros juízes.
A diferença de tratamento do STF a advogados de
políticos acusados de corrupção e lavagem de dinheiro e de invasores dos
prédios dos Três Poderes também salta aos olhos: Kakay é o defensor de dezenas
de alvos da Lava Jato que, em 2019, apareceu em foto nos corredores do Supremo
vestindo bermuda. Já os defensores dos réus do 8/1 foram proibidos de fazer até
manifestação oral no STF, após um deles, Sebastião Coelho, ter dito que os
ministros da Corte são as pessoas mais odiadas do país.
Fica, portanto, a seguinte pergunta:
Após pedido de prisão domiciliar por motivos de
saúde, o STF teria deixado preso por quase nove meses um político defendido por
advogado alinhado à ala “garantista” da Corte, ou um ex-assessor de um filho de
um presidente da República, tal como deixou o réu Cleriston Pereira da Cunha
até o dia da sua morte?
LEIA TAMBÉM:
Um breve histórico dos casos pode ajudar a
responder:
1. CLERISTON PEREIRA DA CUNHA
8 de janeiro – crime e prisão
Ele foi preso dentro do Senado em 8 de janeiro, dia
da invasão dos prédios dos Três Poderes.
27 de fevereiro – pedido de domiciliar
O advogado Bruno Azevedo de Sousa solicitou a
prisão domiciliar, alegando que Cleriston tinha “sua saúde debilitada em razão
da Covid-19, que lhe deixou sequelas gravíssimas, especificamente quanto ao
sistema cardíaco”. Na ocasião, anexou um laudo médico que citava medicamentos e
dizia que havia “risco de morte pela imunossupressão e infecções”.
Abril – denúncia da PGR
A Procuradoria-Geral da República denunciou
Cleriston por cinco crimes e ele acabou virando réu.
Maio – alerta da defesa
A defesa de Cleriston alertou – e aqui se mantém o
grifo original – que “a segregação prisional PODERÁ SER SENTENÇA DE MORTE ao
referido uma vez que a conjugação dos tais tratamentos também se faz necessária
em conjunto com medicação prescrita”.
1º de setembro – parecer da PGR
A PGR concordou com o pedido de liberdade
apresentado pela defesa.
20 de novembro – morte
A Vara de Execuções Penais (VEP) informou que
Cleriston teve um “mal súbito durante o banho de sol” e morreu, aos 46 anos.
Ele sofria de diabetes e hipertensão e utilizava medicação controlada, de
acordo com a Vara de Execuções Penais.
Moraes determinou que a direção do Centro de
Detenção Provisória (CDP) II forneça “informações detalhadas” sobre a morte do
réu.
1. PAULO MALUF
20 de dezembro de 2017 – prisão e pedido de
domiciliar
O ex-prefeito de São Paulo e deputado federal
entregou-se à Polícia Federal, aos 86 anos, condenado a 7 anos, 9 meses e 10
dias de prisão, em regime fechado, pelo crime de lavagem de dinheiro. No mesmo
dia, seus advogados pediram prisão domiciliar, alegando doenças graves como
câncer e diabetes, com possibilidade de deterioração rápida do quadro clínico
no caso de manutenção da medida.
Janeiro de 2018 – primeira instância rejeita
O juiz Bruno Aielo Macacari, da Vara de Execuções
Penais (VEP) do Distrito Federal, rejeitou o pedido, alegando que:
– Maluf se recusou a receber atendimento odontológico
na Papuda em razão de a consulta não ter sido realizada na hora marcada;
– Maluf não estava se alimentando corretamente por
conta própria e “tem passado os dias à base de minipizza, refrigerante, café e
água”, itens que não fazem parte da alimentação servida no presídio e que eram
custeados por ele na cantina;
– havia cerca de 16 mil presos na mesma
penitenciária, sendo mil com doenças graves, entre os quais 485 hipertensos,
quatro cardiopatas e sete cadeirantes.
9 de março de 2018 – ministro do STJ rejeita
O ministro Jorge Mussi, do Superior Tribunal de
Justiça (STJ), também recusou o pedido, destacando que, de acordo com
informações do juízo da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal, Maluf
vinha recebendo a assistência médica necessária à sua saúde, inclusive com a
adoção, pelo estabelecimento prisional, das exigências da defesa com vistas a
evitar a ocorrência de danos mais sérios.
28 de março de 2018 – Toffoli concede
Pouco mais de três meses depois do pedido, o
ministro Dias Toffoli, do STF, concedeu a Maluf a prisão domiciliar negada nas
demais instâncias:
“A notícia divulgada na manhã desta quarta-feira de
que ele foi internado às pressas em hospital no fim da noite passada, por
complicações no seu estado de saúde, corroboram os argumentos trazidos à
colação pela defesa, bem como reforçam, pelo menos neste juízo de cognição
sumária, a demonstração satisfatória, considerando os documentos que instruem
este feito, da situação extraordinária autorizadora da sua prisão domiciliar
humanitária”, escreveu Toffoli.
19 de abril de 2018 – Fachin confirma
O ministro Luiz Edson Fachin, do STF, concedeu
Habeas Corpus de ofício em favor de Maluf, mantendo a liminar de Toffoli.
16 de maio de 2023 – indulto
O STF extinguiu as penas de Maluf com base em
indulto de Natal concedido por Jair Bolsonaro. Ele segue livre, leve e solto.
1. JORGE PICCIANI
16 de novembro de 2017 – prisão
O deputado estadual Jorge Picciani, de 62 anos,
entregou-se à Polícia Federal, após decisão do TRF-2 pela prisão preventiva no
âmbito da Operação Cadeia Velha, que apurava a prática dos crimes de corrupção,
associação criminosa, lavagem de dinheiro e evasão de divisas pela presidência
da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) e outros cargos na Casa.
8 de março de 2018 – pedido de domiciliar
A defesa do então presidente afastado da Alerj
entrou com habeas corpus no STF alegando que ele foi submetido a uma
“complicadíssima cirurgia, de quase dez horas”, em função de um câncer na
bexiga:“Levado ao cárcere, o ambiente insalubre e impróprio para pacientes que
demandam cuidados específicos trouxe à tona permanente infecção urinária,
acompanhada de incontinência.”
27 de março de 2018 – Toffoli concede, sob protesto
de Fachin
Relator da ação, o ministro Dias Toffoli, do STF,
concordou com o pedido no mesmo mês e foi acompanhado pelo então ministro Celso
de Mello na sessão.
“Aqui não está em jogo ele ser parlamentar, mas sim
uma questão de saúde, tanto que não se pede liberdade, mas sim prisão domiciliar.
Se é permitido ao preso definitivo [a prisão domiciliar], a fortiori, com muito
mais razão, ao preso provisório”, afirmou Toffoli, lembrando que Picciani ainda
não estava condenado, mas em prisão preventiva.
Luiz Edson Fachin divergiu, alegando que a prisão
domiciliar exige que o preso esteja “extremamente debilitado”, o que ele não
constatou a partir de perícia. No laudo produzido durante visita, Picciani
havia sido descrito como “calmo, lúcido, orientado no tempo e espaço, além de
bastante cooperativo”, “pensamento normal, humor presente, mas levemente
deprimido”; “sem delírios ou alucinações”; “bom estado geral, bom estado de
nutrição, sinais de emagrecimento recente”.
8 de abril de 2021 – internação
Somente três anos após concessão de prisão domiciliar,
Picciani foi internado no Hospital Vila Nova Star, em São Paulo, onde fazia um
tratamento de câncer na bexiga.
14 de maio de 2021 – morte
Picciani morreu no hospital, aos 66 anos.
FABRÍCIO QUEIROZ
18 de junho de 2020 – prisão
Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro
em gabinete na Alerj, foi preso, aos 54 anos, em Atibaia, em imóvel do advogado
de Flávio e Jair Bolsonaro, Frederick Wassef. A esposa de Queiroz, Márcia
Aguiar, continuou foragida.
19 de junho de 2020 – pedido de domiciliar
Defesa de Queiroz entrou na Justiça com pedido de
prisão domiciliar, citando tratamento a um câncer no intestino, uma cirurgia de
próstata feita dois meses antes e o risco de contágio por estar no grupo de
risco em meio à pandemia de Covid-19.
“É medida humanitária que busca compatibilizar a
necessidade de segregação cautelar com outros direitos subjetivos do
investigado ou acusado, como o direito à vida e à integridade física”, afirmou
Paulo Emílio Catta Preta.
9 de julho de 2020 – Noronha concede
Vinte dias depois, o então presidente do STJ, João
Otávio de Noronha, que disputava indicação de Jair Bolsonaro a uma vaga no STF,
atendeu ao pedido da defesa e concedeu, durante seu plantão no recesso do
Judiciário, prisão domiciliar a Queiroz em razão de suas “condições pessoais de
saúde” e, também, a sua esposa, embora foragida.
“O mesmo vale para sua companheira, Márcia Aguiar,
por se presumir que sua presença ao lado dele seja recomendável para lhe
dispensar as atenções necessárias, visto que, enquanto estiver sob prisão
domiciliar, estará privado do contato de quaisquer outras pessoas (salvo de
profissionais da saúde que lhe prestem assistência e de seus advogados)”,
informou o STJ, ao divulgar a decisão.
13 de agosto de 2020
O relator do caso, ministro Felix Fischer, derrubou
a decisão de Noronha e restabeleceu a prisão preventiva de Queiroz e Márcia.
Um painel no site do STF com estatísticas sobre
decisões da Corte relacionadas à Covid indicava que a maioria dos habeas corpus
com esse argumento era recusada. O mesmo acontecia na Quinta Turma do STJ, onde
foram recusados 112 (97,4%) dos 115 pedidos envolvendo pedidos de liberdade, de
prisão domiciliar ou de progressão de pena que citavam os riscos de contágio
por Covid-19 como argumento. Só 3 foram concedidos.
14 de agosto de 2020
O ministro Gilmar Mendes, do STF, derrubou a
decisão de Fischer e restabeleceu a de Noronha, alegando, entre outros motivos,
que em “cenário de pandemia mundial que atingiu de forma significativamente
grave o Brasil, o Estado deve adotar uma postura proativa para impedir a
ocorrência de danos à vida e à saúde de sua população”. Assim, diante da
“fragilidade da saúde” de Queiroz, julgou adequada a prisão domiciliar.
Novembro de 2021 em diante
De um lado, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e
Kassio Nunes Marques – este último indicado por Jair Bolsonaro – garantiram na
Segunda Turma do STF o foro privilegiado retroativo a Flávio Bolsonaro. Do
outro, o STJ julgou que o juiz Flávio Itabaiana não tinha competência para
participar do caso; e anulou todas as decisões tomadas pelo magistrado, o que
levou à derrubada das investigações desde o início.
Desde então, mesmo não tendo conseguido se eleger
deputado estadual em 2022, Queiroz segue livre, leve e solto, dando entrevistas
em podcasts e mandando recados.
Atualmente, ele tem 58 anos.
Nenhum comentário