Empresa com apenas 1 funcionário leva contrato de R$ 285,8 milhões com Ministério da Saúde
Microempresa goiana é ré por improbidade no Pará e
representa chinesa que também é ligada a empresa de preso na Operação Vampiro
Uma microempresa com apenas um funcionário
registrado ao menos até março e capital social de R$ 1,3 milhão conseguiu um
contrato de R$ 285,8 milhões, com dispensa de licitação, com o Ministério da
Saúde. O acordo, assinado em abril, é para fornecimento de 293,5 mil frascos de
imunoglobulina humana, um medicamento hemoderivado, ou seja, produzido a partir
do sangue, usado para melhorar a imunidade de pacientes acometidos por uma
série de doenças, como síndrome de Guillain-Barré.
O volume de recursos, aliado com o tamanho da
empresa Auramedi, de Goiás, desconhecida no mercado farmacêutico, chama a
atenção. Assim como o nome da companhia que ela representa nacionalmente, a
chinesa Nanjing Pharmacare. O contrato é firmado pelo ministério com a
asiática, e a Auramedi assina como representante.
A Nanjing também é representada no Brasil pela
Panamerican Medical Supply, que tem como um dos sócios Marcelo Pupkin Pitta,
empresário do ramo que já foi preso na Operação Vampiro, em 2004, e, de novo,
em 2007. As investigações apuraram suspeita de fraude em licitação no
Ministério da Saúde, justamente em compras de medicamentos hemoderivados,
incluindo imunoglobulina.
A sede da Auramedi é uma casa em um centro
empresarial de Aparecida de Goiânia, região metropolitana da capital. O
Metrópoles esteve lá na última sexta-feira (22/9), em horário comercial, mas o
local estava fechado. Um comerciante vizinho ouvido pela reportagem afirmou
nunca ter visto movimento na farmacêutica.
Ainda em agosto, a reportagem conversou com um
funcionário do centro empresarial – ele atestou que uma funcionária vai, às
vezes, à sede da Auramedi, mas, geralmente, para pegar encomendas que ficam na
administração. Na internet, a presença da empresa também é ínfima. A Auramedi
não tem sequer um site.
A empresa e o único sócio, Fábio Granieri de Oliveira, são réus por improbidade administrativa em uma ação popular no Tribunal de Justiça do Pará. A denúncia, recebida pelo Judiciário, aponta suspeita de fraude em uma contratação, também com dispensa de licitação, durante a pandemia da Covid-19 no município de Parauapebas. Apesar disso, a companhia não tem restrições para participar de licitações ou firmar contratos com o Poder Público.
Um dos elementos no processo é o fato de Fábio ter
participado da tomada de preço solicitada pela prefeitura como representante da
Auramedi, mas também assinou da mesma forma em uma das outras duas
concorrentes. A empresa foi criada em 2013, mas o empresário passou a ser sócio
em maio de 2020, ocasião em que a firma saiu de um capital social de R$ 50 mil
para R$ 1,3 milhão.
A mudança do quadro societário da Auramedi, com
Fábio como único sócio, ocorreu em maio de 2020, três meses depois que a
empresa foi dada como pagamento de uma dívida a outras três pessoas. Antes
disso, Fábio trabalhou na gigante farmacêutica EMS, segundo informado por ele.
Dados do Portal da Transparência apontam que a
Auramedi começou a participar de pregões de órgãos federais de outubro do ano
passado para cá e recebeu quantias pequenas para fornecimento de medicamentos,
com notas de pagamento de até R$ 6,2 mil.
É do contrato com o Ministério da Saúde que vem o
maior valor recebido pela empresa até o momento: R$ 16,5 milhões. Para
conseguir o contrato, e antes de receber um centavo, a Auramedi pagou R$ 246,6
mil em um seguro de R$ 14,3 milhões, 5% do valor do contrato, algo que é
exigido na legislação.
Operação Vampiro
Tanto a Auramedi quanto a Panamerican, de Marcelo
Pitta, dizem representar a chinesa Nanjing, que é uma trading — ou seja, atua
como intermediária entre fabricantes e compradores. Inclusive neste último
processo de dispensa de licitação do ministério para compra de imunoglobulina,
as duas se apresentam como representantes da chinesa no Brasil. A reportagem
perguntou a Fábio Granieri se ele é representante exclusivo, mas ele não
respondeu.
A Panamerican chegou a fornecer medicamentos
enviados pela Nanjing ao ministério em contratos recentes. A reportagem
encontrou apenas outra empresa brasileira, do Distrito Federal, que já disse
representar a chinesa no passado, em 2020. Essa terceira empresa aparece como
ré no mesmo processo no Pará em que Fábio Granieri é réu. A reportagem entrou
em contato com o sócio, que pediu para responder por mensagem, mas não o fez
até esta publicação.
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Coincidentemente, o advogado que representou Fábio
Granieri no processo de dispensa de licitação do ministério também atuou em
nome de Marcelo Pitta em um processo de 2020. O advogado é de Pernambuco, longe
do Distrito Federal e de Goiás, onde fica a Auramedi e onde Fábio diz morar.
Procurado, o advogado alegou que não poderia dizer se Pitta indicou seu
escritório à empresa devido a sigilo dos contratos.
A Panamerican chegou a pedir a impugnação do
processo de dispensa de licitação em questão, solicitando melhoria do termo de
referência. No pedido, ela alegou prazos inexequíveis de início de entrega;
dúvida sobre quantitativo a ser fornecido em cada entrega; e sobre a
possibilidade de apresentação de proposta em dois cenários (um respeitando o
cronograma, e outro não respeitando o cronograma).
Apesar do pedido de impugnação, o que mostra
ciência da existência do processo, a empresa não enviou proposta.
A dispensa de licitação
A forma como ocorreu a dispensa de licitação também
chama a atenção. A começar pelo volume de medicamento. O Ministério da Saúde
poderia ter aberto um processo de dispensa para aquisição de uma quantidade
menor em regime de urgência, mas optou por comprar sem licitação o equivalente
ao consumo de seis meses.
Duas empresas venceram a tomada de preço realizada
pelo ministério — a Auramedi, representando a chinesa Nanjing Pharmacare, e a
Farma Medical, em nome da Prime Phama LLC, dos Emirados Árabes, que ficou
responsável por fornecer 90 mil frascos em um contrato menor, de R$ 87,6
milhões.
A empresa goiana entregou os medicamentos, mas com
atraso de até 35 dias. A Farma Medical, segundo o ministério, não entregou nada
até o momento — o dono da empresa nega e diz ter entregue 30 mil frascos em
junho, mas não enviou documentos que comprovassem o serviço.
O processo de dispensa de licitação vem de um
imbróglio para aquisição de imunoglobulina que de fato colocou em risco o
abastecimento do Sistema Único de Saúde. A história começa ainda em 2020,
quando, no auge da pandemia da Covid-19, o produto estava em falta no mercado.
Dois pregões iniciados pelo ministério restaram fracassados.
No ano seguinte, houve outra disputa pública, mas
uma das empresas alegou irregularidades em sua desclassificação, e o Tribunal
de Contas da União (TCU) suspendeu. Posteriormente, no entanto, o Supremo
Tribunal Federal (STF) liberou a compra.
Depois da compra autorizada pelo STF, o ministério
abriu novo pregão em dezembro do ano passado. Mas, diante de uma determinação
do TCU de que fosse permitida a participação de empresas sem registro na
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o ministério iniciou outro
processo, dessa vez com dispensa de licitação, alegando urgência.
A pasta informou que precisava que a primeira
parcela de medicamento fosse entregue em abril, para não ocorrer
desabastecimento. No fim, a primeira parte foi entregue só em meados de junho.
O ministério ressaltou, ao longo do processo, o
acórdão de fevereiro deste ano do TCU, no qual determinou que a pasta adotasse
“as medidas estritamente necessárias para garantir o estoque” de imunoglobulina
por meio, “por exemplo, de contrato emergencial ou termo aditivo, se couber”,
incluindo a participação de empresas estrangeiras com produtos sem registro.
A Anvisa, ao autorizar a importação em caráter
excepcional do medicamento que não tem registro sanitário, cita que não resta
provada a indisponibilidade do medicamento do mercado, mas que entende que o
fato não afasta a determinação do TCU.
A tomada de preço
O Ministério da Saúde abriu a tomada de preços em
27 de fevereiro, com publicação no Diário Oficial da União (DOU), para
recebimento de propostas até as 23h59 de 3 de março. Uma das empresas foi
desclassificada porque enviou a proposta um minuto depois, à 0h.
A pasta desclassificou outras cinco alegando falta
de concordância com o edital. O ministério, então, selecionou as cinco
propostas com menores preços (aqui entra a da Auramedi depois que uma das
concorrentes foi eliminada) para analisar, e excluiu as outras 10 restantes.
As primeira e segunda colocadas acabaram eliminadas
por alegação de que o produto oferecido é fabricado na Índia, país que não é
membro da ICH. A Apx Health Corporation, que estava em segundo lugar, entrou
com pedido de impugnação ressaltando que a Índia integra o ICH na condição de
observadora, e que a sua proposta não poderia ter sido desclassificada. A
reportagem procurou a Anvisa para esclarecer a questão, mas não obteve retorno.
A quarta colocada foi eliminada porque, segundo o
ministério, não atendeu a convocação de envio de documentação para se
habilitar. Com isso, restou a Farma Medical, que estava em terceiro, e a
Auramedi, que estava em quinto no ranking de propostas mais vantajosas. A todo
tempo, a Auramedi ressaltou que tinha quantia suficiente para suprir a demanda
completa do ministério, de 383,5 mil mil frascos, e tentou desabilitar a
concorrente Farma Medical.
Sem registro
No âmbito dos processos, farmacêuticas maiores e
com registro na Anvisa alegaram que não havia justificativa para dispensa de
licitação, tampouco para permitir que produtos sem registro na agência
entrassem na disputa. Na própria tomada de preço, as propostas de empresas com
registro na Anvisa somaram o equivalente a 82% do quantitativo que o ministério
precisava.
O valor, no entanto, seria menos vantajoso e
poderia chegar a R$ 716,8 milhões, quase o dobro do que foi comprometido pelo
ministério nesses dois contratos. E, diante da decisão do TCU de fevereiro, a
compra foi mantida com empresas sem registro.
O outro lado
A Panamerican foi procurada na sexta-feira (22/9),
mas não respondeu ao Metrópoles. Por telefone, um funcionário informou que a
empresa não responderia aos questionamentos.
Fábio Granieri, da Auramedi, criticou a concorrente
Farma Medical, que não entregou os medicamentos compactuados, e alegou que as
informações trazidas pela reportagem são equivocadas.
“É surpreendente que informações equivocadas
estejam sendo veiculadas a respeito da Nanjing Pharmacare, vez que desprovidas
de fundamentação fática. Igualmente inesperado que não esteja sendo dado o
necessário destaque ao inadimplemento contratual da Prime Pharma LLC, que
efetivamente prejudica a saúde pública, irreversivelmente”, escreveu.
Em outros oito parágrafos, a Auramedi argumentou
que a Nanjing cumpriu as exigências e ressaltou problemas da concorrente.
O Ministério da Saúde informou que a compra
emergencial visa evitar o desabastecimento de imunoglobulina e que a aquisição
seguiu regulamentação da Anvisa que trata de critérios para importação em
caráter de excepcionalidade.
A pasta acrescentou que recebeu até o momento da
Nanjing Pharmacare, representada nacionalmente pela Auramedi, 245.842 frascos,
equivalentes às cinco primeiras parcelas, e que já recebeu parte da última
parcela, prevista para entrega no próximo 30/9.
O ministério detalhou, ainda, que as empresas
contratadas estavam regulares no momento da contratação, “não incorrendo em
qualquer impedimento legal”.
FONTE: METROPOLES
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