Reforma Tributária de Lula acaba com federação, é projeto de poder e cheque em branco para a União, diz jurista da PUC-SP
Titular da PUC-SP, o tributarista Roque Antonio Carrazza critica texto que está em votação na Câmara
Professor titular da Faculdade de Direito da PUC-SP
e jurista referência no estudo de Direito Tributário, o advogado Roque Antonio
Carrazza faz sérias críticas à proposta de reforma tributária em votação na
Câmara dos Deputados nesta quinta-feira, 6. Para o especialista no assunto, a
reforma ignora a Constituição pois “acaba com a federação”, beneficia apenas a
indústria e o setor financeiro e não deveria ser apreciada de forma apressada
no Congresso. “Vale aqui, a sabedoria popular, bem traduzida no provérbio ‘quem
decide depressa se arrepende devagar’”, afirma o tributarista, nessa entrevista
ao Estadão.
Carrazza, que é autor de diversos livros sobre o
assunto, como o Curso de Direito Constitucional Tributário, que está em sua 34ª
edição, também afirma que é uma “maciça propaganda enganosa” a ideia de que
todos pagarão menos impostos e diz que a ideia de um imposto sobre valor
agregado dual é falsa, pois a União terá mais poder que Estados e municípios.
“Esse substitutivo, a pretexto de veicular uma
reforma tributária necessária e louvável, encerra um verdadeiro projeto de
poder, qual seja, o de submeter os Estados, os municípios e o Distrito Federal,
ao jugo da União, transformando o Brasil, na prática, em um estado unitário”,
afirma Carrazza.
O sr. é bastante crítico à atual reforma tributária
em votação na Câmara. Qual o principal problema?
As normas jurídicas mais importantes se encontram
na Constituição. De fato, ela é a Lei Maior, a matriz de todas as manifestações
normativas do Estado. Em matéria tributária, a Constituição brasileira foi
extremamente minuciosa. Graças à Constituição, nós contribuintes só podemos ser
tributados dentro dos parâmetros constitucionais. Muito bem. No substitutivo da
PEC 45, que o deputado Arthur Lira (PP-AL) quer aprovar o mais rapidamente
possível, foi esquecida essa ideia fundamental.
Ademais, o texto do substitutivo da PEC 45 somente
foi divulgado há pouco mais de uma semana. Não houve tempo para ser analisado
com a seriedade que o assunto merece. Não há como aprová-lo, sem conhecer e
avaliar seu conteúdo. Vale aqui, a sabedoria popular, bem traduzida no
provérbio “quem decide depressa se arrepende devagar”.
Mas a discussão sobre a reforma está colocada há
décadas e a base do texto vem sendo discutida no Congresso desde 2019. Isso não
seria suficiente?
A meu ver, não está sendo observado o devido processo legislativo de reforma constitucional. As PECs devem ser examinadas pela Comissão de Constituição e Justiça e, depois, aprovadas pela Comissão Especial no prazo de quarenta sessões. Ora, aprovada dessa forma foi a PEC 45 e, não, o substitutivo, que é, em rigor, uma nova PEC. Somente essa injuridicidade, a meu ver, inviabiliza a sua aprovação.
Por que a ideia de que a Constituição é a Lei Maior
foi ignorada no texto atual?
Na prática, ela acaba com a federação. A reforma
tributária, se aprovada da maneira como está posta no substitutivo da PEC 45,
retirará autonomia financeira dos Estados, dos municípios e do Distrito
Federal. Ora, a autonomia financeira é o pressuposto necessário para a
existência das autonomias política e jurídica.
Vale aqui lembrar que o princípio federativo é
“cláusula pétrea”, ou seja, não pode ser amesquinhado, muito menos abolido, nem
mesmo por meio de emenda constitucional.
A criação de um IVA dual, com o IBS destinado a Estados e municípios, não resolve essa questão?
O falso IBS dual será arrecadado pela União e,
depois, por ela repassado. No entanto, a União poderá, sob pretextos vários,
como quase sempre acontece, retardá-los, especialmente para as pessoas
políticas governadas por integrantes de partidos políticos de oposição ao
governo central. Sem autonomia financeira, essas pessoas políticas terão que
pedinchar as benesses da União para sobreviver. Serão, na prática, reduzidas à
condição de meros territórios federais, a exemplo dos que existiram até serem
abolidos com o advento da atual Constituição.
E nem se diga que haverá fundos e câmaras de compensação para garantir tais repasses. O assunto será regulado por uma lei complementar nacional, votada, pois, pelo Congresso. As reuniões que se fizerem, com base nessa lei complementar nacional, terão, de um lado, a União e, do outro, os representantes dos mais de 5.500 Municípios, dos 27 Estados e do Distrito Federal. O substitutivo, não indica se todos terão voz e voto ou, no caso de serem apenas alguns, o modo como serão escolhidos. Não é preciso grande esforço intelectual para se concluir que a União assumirá o total domínio do assunto, o que fatalmente entrará em rota de colisão com os postulados da Federação brasileira.
O sr. também argumenta que a reforma dá à União uma
“caixa vazia”. O que isso significa?
O substitutivo desconstitucionaliza parte do nosso
sistema tributário. Os contribuintes, na atual Constituição, encontram as
regras-matrizes dos tributos que podem ser obrigados a suportar. Trocando a
ideia em miúdos, as competências tributárias das pessoas políticas se encontram
sempre limitadas na Constituição por um verbo e um complemento - exemplo:
auferir rendimentos, prestar serviços, adquirir imóvel. Graças a isso, os
contribuintes sabem, de antemão, que, para serem compelidos a pagar o imposto sobre
a renda, deverão auferir rendimentos, para serem compelidos a pagar o ISS,
prestar serviços, para serem compelidos a pagar o ITBI, adquirir um imóvel, e
assim por diante.
O IBS não está estruturado dessa forma. O substitutivo não lhe aponta nem o verbo nem o complemento. Dá de presente à União uma verdadeira “caixa vazia”, na qual o legislador complementar nacional tudo poderá colocar. O IBS poderá ser exigido de quem vender mercadorias, de quem prestar serviços, de quem ceder onerosamente o direito de uso de um bem, de quem realizar um arrendamento mercantil, etc. O contribuinte ficará sob o jugo da insegurança e da incerteza, porque não lhe será garantido o direito de deixar de recolher tributo que esteja fora dos parâmetros constitucionais.
O governo promete que não haverá aumento da carga tributária total. E um dos argumentos favoráveis também é o de que haverá ganho para a economia, com maior eficiência e transparência.
Deploro a maciça propaganda enganosa que está sendo
feita, no sentido de que, com a reforma, todos pagarão menos tributos. Não é
verdade. Só as indústrias e o setor financeiro serão beneficiados com a
reforma. O setor agropecuário, que é o grande responsável pelo equilíbrio da
nossa balança econômica, será altamente onerado. O mesmo ocorrerá com o setor
comercial. Isso para não falar do setor de serviços, que emprega a maior parte
da nossa mão de obra e responde pela maior parte do nosso PIB.
Atualmente, o setor de serviços paga, em média, a
título de ISS, 3% do preço de cada serviço prestado. Se a reforma tributária
vingar, o ISS será abolido e o setor pagará, a título de IBS, 25% do preço de
cada serviço prestado. O governo federal argumenta que, com os descontos, o
montante do tributo chegará, em média, a 10% do preço de cada serviço prestado,
o que, diga-se de passagem, é uma falácia, porque o setor, não podendo abater
os gastos com mão de obra, terá poucas deduções a fazer. Mas, mesmo que se
aceite a versão oficial, o certo é que 10% representam mais do que o triplo dos
3% que o setor paga.
A pretexto de alavancar a industrialização do País, serão prejudicados todos os outros setores da economia nacional. E, pior, os contribuintes pessoas físicas serão ainda mais onerados pela já insuportável carga fiscal.
Além da questão sobre o IBS, há outros pontos que
reforçam o poder da União, na avaliação do sr.?
O substitutivo também prevê que o imposto seletivo
incidirá sobre bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, nos
termos da lei ordinária que a União vier a editar. O legislador ordinário
poderá, portanto, regular o assunto como lhe aprouver, já que o substitutivo
não fixa parâmetros para que sejam apontados tais bens e serviços nocivos.
Não é difícil perceber que, com esse verdadeiro
“cheque em branco”, a União terá poderes para controlar quase todos os tributos
do País, cujo montante ultrapassa 90% da arrecadação nacional, o que, sem
dúvida, é altamente censurável.
Esse substitutivo, a pretexto de veicular uma
reforma tributária necessária e louvável, encerra um verdadeiro projeto de
poder, qual seja, o de submeter os Estados, os municípios e o Distrito Federal,
ao jugo da União, transformando o Brasil, na prática, em um estado unitário.
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