Como saber se o espumante ou vinho vem de trabalho escravo?
Marcas premiadas de suco de uva, vinho e espumante da Serra Gaúcha estão envolvidas em um escândalo de trabalho escravo. Como saber se o produto que consumimos está "contaminado" com esse crime contra a humanidade?
Champanhe e vinho têm tudo a ver com celebração. Um
brinde ao ano novo, na reunião com os amigos, num casamento. A imagem das taças
erguidas não poderia gerar mais incômodo em um momento como esse: é que às
custas do bem-estar e da degradação de muita gente, outras tantas pessoas
celebraram a vida ou um momento especial. Uma embriaguez de descaso e
ignorância.
As denúncias de trabalho escravo em Bento Gonçalves
– RS, reconhecida região vinícola, repercutiram mais do que normalmente
repercutem as notícias de trabalho escravo em plantações de laranja,
frigoríficos e cafezais Brasil afora.
Recentemente, uma operação do MPT resgatou sete
pessoas de condições semelhantes às de escravos em uma fazenda de café em
Aimorés (MG). O capataz da fazenda vendia drogas, como crack, além bebidas
alcoólicas aos trabalhadores - que ficavam presos à plantação por dívidas
causadas pela dependência. Ninguém recebia salário e as condições eram
insalubres.
No caso do premiado vinho gaúcho, os trabalhadores foram contratados na Bahia, por uma empresa terceirizada, com a promessa de que ganhariam três mil reais por mês na colheita de uva para grandes produtoras como Garibaldi, Salton e Aurora - (honremos nossos espumantes nacionais, diziam os mais adeptos...). Só não contávamos com mais essa dentro da nossa cadeia produtiva. Em vez de vinho, exportamos vergonha.
As vítimas têm entre 18 e 57 anos e relataram ameaças de morte não só a elas, como aos familiares. Um dos “contratados” descreveu a seguinte situação: “Quando chegava aqui, saía 4 horas da manhã, ia pras fazendas trabalhar catando uva, quando chegava, chegava 10h, 11h da noite. Eles pegavam a quentinha azeda, davam à gente pra comer. Diziam: “cês têm que comer isso mesmo porque baiano bom, é baiano morto".
As vinícolas que pagaram as terceirizadas para a colheita das uvas disseram em notas que não sabiam dos casos de trabalho escravo. Atribuem à empresa contratante a responsabilidade pelo regime de escravidão. Mas essa desculpa não cola mais. Não é dever da empresa saber de quem está comprando a uva e fiscalizar isso? Cadê a chamada responsabilidade social? Os princípios ESG que muitas adoram dizer que sustentam?
A coordenadora do programa Escravo, nem pensar!, da
ONG Repórter Brasil, Natália Suzuki, explica que as empresas, que vendem o
produto final ao consumidor, são responsáveis pela cadeia produtiva inteira e
por isso devem ser responsabilizadas pela forma como os seus produtos finais
são produzidos em casos de violações, como trabalho escravo: “ No Brasil, para
casos de trabalho escravo, há a possibilidade de se responsabilizar quem se
vale desse tipo de exploração nas esferas criminal, trabalhista e
administrativa. As empresas primam pela qualidade do seu produto final e, para
isso, possuem uma série de procedimentos e protocolos voltados às suas
contratadas para que elas forneçam insumos e matéria-prima que atendam os seus
requisitos mínimos de qualidade. Por que o mesmo não valeria para as condições
as que os trabalhadores estão submetidos ao longo da cadeia? Elas precisam
criar mecanismos de controle e monitoramento dos seus fornecedores para
garantir que a legislação trabalhista seja respeitada e evitar que a sua cadeia
seja suja com uma ocorrência de trabalho escravo“ - afirma Natália.
E como nós, consumidores, podemos mudar esse cenário? Eu com certeza não quero tomar vinho às custas de trabalho escravo. Você quer?
Bom, no caso da carne, existe um app que ajuda a rastrear a produção e aponta as empresas com problemas trabalhistas. Chama-se do pasto ao prato. Além disso, Natália explica que é dever do consumidor exigir transparência e informação das empresas sobre o que está consumindo: “Hoje, nos rótulos dos alimentos, constam de forma clara os componentes do produto. Não seria razoável ter uma informação equivalente sobre a mão de obra e procedência daquele alimento? O consumidor deve estar atento à qualidade dos produtos, mas também à forma como ele é produzido. É preciso se questionar se o produto que ele come e bebe é decorrente de exploração. Para vários produtos, há certificadoras que atestam a qualidade e a procedência do produto para o consumidor. É razoável que elas também atestem a conduta das empresas sobre a condição de trabalho de mão de obra. O que adianta consumir um produto livre de agrotóxico, orgânico, “gourmet”, se ele foi feito com trabalho escravo?”
No caso do vinho e suco de uva, no entanto, ainda
não há uma ferramenta de checagem.
“É preciso estar atento às notícias e também é possível consultar a lista suja do trabalho escravo, que é o cadastro de empregadores que usaram trabalho escravo. O documento é atualizado e divulgado pelo Ministério do Trabalho e Emprego a cada seis meses”, segundo a coordenadora da Repórter Brasil, que completa: “Falta informação clara e acessível. As empresas não divulgam tudo sobre o processo de produção, por isso nos chocamos quando vemos que um produto que consumimos é feito com trabalho escravo. A verdade é que já tivemos casos de trabalho escravo na produção de carne, café, suco de laranja, maçã, cacau etc., sem mencionar as roupas de marcas famosas. Esse caso das vinícolas para a produção de vinho é só mais um. A falta de informação reduz o poder de escolha e, além disso, em muitos setores, há uma concentração de mercado muito grande, com poucas marcas, dentre as quais o consumidor pode escolher.”
O que dizem as empresas:
Aurora:
No início do século passado, algumas famílias
italianas cruzaram o Atlântico à procura de dias melhores. Nas malas, poucas
peças de roupa, uma ou outra foto desbotada, muita coragem e um sonho: refazer
a vida em um país estranho. A Vinícola Aurora nasceu desse sonho. Desse sonho e
de muito trabalho.
O trabalho que sempre correu nas veias de nossos
fundadores logo se misturou a esta terra, espalhou-se por entre os parreirais,
nutriu cada planta com um inegociável senso de respeito pelas mãos que a
semearam, que a colheram, que a ajudaram a ser da uva, o vinho, e a ganhar o
mundo, reconhecimentos e, mais importante, ganhar um lugar à mesa e no coração
dos brasileiros.
Os recentes acontecimentos envolvendo nossa relação
com a empresa Fênix nos envergonham profundamente. Envergonham e enfurecem.
Aprendemos com aqueles que vieram antes que, sem trabalho, nada seriamos. O
trabalho é sagrado. Trair esse princípio seria trair a nossa história e trair a
nós mesmos. Entretanto, ainda que de forma involuntária, sentimos como se fora
isso que fizemos.
Primeiramente, gostaríamos de apresentar nossas
mais sinceras desculpas aos trabalhadores vitimados pela situação. Ninguém mais
do que eles trazem, nos ombros curados pelo Sol, o peso de uma prática
intolerável, ontem, hoje e sempre. A testa daqueles que fazem o Brasil
acontecer, todos os dias, às custas do seu suor honesto, deveria estar sempre
erguida, orgulhosa, e nunca subjugada pela ganância de uns poucos. Repudiamos
isso com todas as nossas forças.
Em seguida, sentimo-nos obrigados a estender essas
desculpas ao povo brasileiro como um todo, não apenas como discurso, mas como
prática. Já cometemos erros, mas temos o compromisso de não repeti-los. Como
empresa, garantimos que a atenção a um tema que nos é tão relevante será
redobrada, práticas serão revistas, e todas as garantias para que um episódio
indesculpável como esse não venha a se repetir serão tomadas. Temos um longo
caminho pela frente, mas todo longo caminho começa com um primeiro passo, e ele
é dado agora.
Desde já estamos trabalhando em um programa robusto
que deve implementar mudanças substanciais nas dinâmicas da Vinícola Aurora.
Essas mudanças devem qualificar não apenas a nossa relação com todos os
parceiros, na busca de obtermos controle sobre os processos como um todo, mas
também nas práticas e politicas internas da empresa e quanto ao nosso papel
enquanto agente econômico, social e cultural de destaque em nossa região e a
responsabilidade que advém disso.
Acreditamos nos valores que queremos reafirmar para
nos tornarmos dignos da confiança do Brasil mais uma vez e espalhar o seu nome
aos quatro cantos do mundo, em cores vivas e pujantes e não em notas cinzas
como a que atravessamos neste momento.
Esperamos sair do outro lado como uma empresa
melhor. Estamos aqui, com a mente e o coração abertos, a começar tudo de novo,
se for preciso, como fizeram nossos antepassados ao aqui desembarcarem. Apenas,
ao contrario deles, que eram pura incerteza sobre uma terra estranha, fazemos
isso com a convicção de ser este um pais maravilhoso que merece o melhor de
nós.
Trabalho não nos assusta. Deveria ser sempre uma fonte de alegria e realização. E a Vinícola Aurora não medirá esforços para colaborar com a construção de um mundo em que o respeito, o orgulho e a realização façam parte da vida de cada trabalhador.
Salton:
Em meio às notícias divulgadas, recentemente, sobre
casos de trabalho análogo à escravidão na região de Bento Gonçalves (RS), nós,
líderes da Vinícola Salton, nos expressamos, publicamente, para esclarecer os
fatos que envolvem o nome da nossa empresa. Em primeiro lugar, a Salton
repudia, veementemente, qualquer ato de violação dos direitos humanos e
expressa, também, seu repúdio a todas e quaisquer declarações que não promovem
a pacificação social.
Não adotamos e nem adotaremos uma posição omissa.
De imediato, tomamos medidas internas que dizem respeito à melhoria do trabalho
em toda nossa cadeia produtiva. Podemos listar ações que estão sendo
intensificadas e outras que serão desempenhadas com a urgência que a gravidade
do tema demanda:
Revisão de todos os processos de seleção e
contratação de fornecedores, com implantação de critérios mais rigorosos e que
coíbam qualquer tipo de violação aos dispositivos legais, incluindo direitos
humanos e trabalhistas;
Estruturação de um cronograma para a realização de
auditoria sobre práticas trabalhistas junto aos fornecedores e prestadores de
serviços de forma recorrente e sistematizada;
Contratação de auditoria independente externa para
certificar as práticas de responsabilidade social;
Ampliação e divulgação de nossos canais de denúncia
e ampla disseminação de nossos códigos de conduta e ética em nossa cadeia
produtiva;
Adesão ao Pacto Nacional pela Erradicação do
Trabalho Escravo.
Adotaremos, ainda, medidas complementares a partir
de novas recomendações de entidades públicas, privadas e órgãos fiscalizadores.
Para melhor elucidar o contexto dos acontecimentos, esclarecemos que o período
de safra da uva é dinâmico, exigindo, por vezes, contratações urgentes para um
curto período. Este ano, no mês de fevereiro, precisamos recorrer à contratação
terceirizada de 14 profissionais para a descarga de caminhões de uva.
Ao tomarmos ciência do gravíssimo resgate ocorrido
nas dependências da empresa prestadora de serviço, suspendemos imediatamente o
contrato de trabalho. Além disso, em total colaboração com o Ministério Público
do Trabalho, fizemos depósitos para o pagamento do fornecedor, visando a
garantia das verbas rescisórias e retorno dos trabalhadores a seus lares.
Somos uma empresa de 112 anos, cujo legado foi
construído por milhares de trabalhadores que sempre foram tratados com respeito
e lealdade. Acreditamos na sustentabilidade e na valorização das relações
humanas como premissa de negócio.
Em nome da transparência e integridade, há anos,
disponibilizamos para todos os públicos nosso Canal de Ética através do site,
0800 800 4545 ou pelo aplicativo para receber denúncias, anônimas ou não, para
averiguar qualquer tipo de conduta que não esteja de acordo com os nossos
valores ou com as leis vigentes.
A Salton segue colaborando com as autoridades e
reforçou o seu compromisso, solidariedade e colaboração junto ao Ministério
Público do Trabalho. Reiteramos nossos valores sociais e éticos e nosso
compromisso de trabalhar, incessantemente, na melhoria contínua e na
implementação de ações para que ocorrências lastimáveis como esta não se
repitam.
Atenciosamente,
Família Salton
Cooperativa Garibaldi:
Diante das recentes denúncias que foram reveladas
com relação às práticas da empresa sob investigação no tratamento destinado aos
trabalhadores a ela vinculados, a Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que
desconhecia a situação relatada.
Com relação à empresa denunciada, o contrato era de
prestação de serviço de descarregamento dos caminhões e seguia todas as
exigências contidas na legislação vigente. O mesmo foi encerrado.
A Cooperativa aguarda a apuração dos fatos, com os
devidos esclarecimentos, para que sejam tomadas as providências cabíveis, deles
decorrentes.
Somente após a elucidação desse detalhamento poderá
manifestar-se a respeito.
Desde já, no entanto, reitera seu compromisso com o
respeito aos direitos – tanto humanos quanto trabalhistas – e repudia qualquer
conduta que possa ferir esses preceitos.
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